Perfil elitizado de
médicos é um dos desafios ao atendimento básico da saúde, avaliam especialistas.
Médicos populares e professor
acreditam que, para democratizar a medicina brasileira, é preciso mudar o
currículo das universidades. Eles criticam a formação voltada para mercado.
Por José Coutinho Júnior, da Redação do jornal Brasil de
Fato.
Mulheres, jovens, brancas, que moram com os pais, nunca
trabalharam e sempre estudaram em escola privada. Este é o perfil da maioria
dos recém-formados em medicina no estado paulista, segundo levantamento do
Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp). A pesquisa ainda está
sendo finalizada, mas dados preliminares foram divulgados pelo presidente do
conselho, Bráulio Luna Filho, em seminário sobre saúde organizado pelo jornal
Folha de S. Paulo.
Os dados relativos à São Paulo correspondem à realidade do
perfil dos médicos em todo país. Um questionário do Exame Nacional de
Desempenho de Estudantes (Enade) de 2013 constatou que 56,1% dos que fizeram a
prova eram mulheres, com 33,9% tendo entre 25 e 29 anos.
Do total de estudantes, 73,6% se declararam como brancos. Os
que se declararam pardos/mulatos corresponderam a 21,3%. Já os que disseram ser
negros representavam 2,3% do universo. Além disso, 2,3% dos estudantes se
declararam amarelo (de origem oriental) e 0,4% se declarou como indígena ou de
origem indígena.
A pesquisa do Enade também aponta que a faixa de renda
familiar mensal mais comum para os estudantes de medicina foi a de dez a 30
salários mínimos (R$ 6.780,01 a R$20.340,00). Além disso, 84% dos estudantes
marcou a seguinte afirmação no questionário: “não tenho renda e meus gastos são
financiados pela minha família ou por outras pessoas”.
O Brasil de Fato conversou com profissionais de saúde para
entender os desafios resultantes desse perfil elitizado dos médicos formados no
Brasil.
Na avaliação do professor Mário Scheffer, do Departamento de
Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo (USP), o perfil corresponde à
elitização do ensino superior como um todo. “Outros cursos muito concorridos
apresentam perfis similares. O agravante é que a medicina é um curso muito
caro, que pessoas de renda mais baixa não conseguem acessar via Fies
[Financiamento Estudantil] ou Prouni [Programa Universidade para Todos] na
mesma proporção dos outros por conta dos preços da mensalidade”, apontou.
O médico da família e supervisor do Programa Mais Médicos,
Renato Penha, diz não se surpreender com os números. “É pouco comum encontrar
pessoas que trabalham e fazem cursos de medicina ao mesmo tempo, porque a carga
horária do curso é pesada, o que limita o acesso dos mais pobres. Outros
perfis, como indígenas ou negros, mesmo com a política de cotas, são pouco
comuns por conta da concorrência”, avaliou.
Scheffer faz a ressalva de que esse perfil de formandos,
apesar de centralizar a medicina em um determinado extrato social, não é único
responsável pela elitização da área. “Não podemos generalizar. Cerca de 75% dos
médicos que se formam trabalham no Sistema Único de Saúde (SUS), que continua
sendo o maior empregador de médicos do país. É óbvio que há médicos que trabalham
apenas na estrutura privada, mas muitos se revezam nas duas estruturas”,
ponderou.
Formação mercadológica
O tipo de formação oferecida nos cursos de medicina
brasileiros, no entanto, segue um viés técnico, voltado para o mercado, na qual
as especialidades que dão mais dinheiro acabam sendo as escolhas principais dos
formados. É o que avalia Joana Carvalho, médica da família no Rio de Janeiro e
orientadora na especialização de Saúde da Família.
“O currículo médico hoje nas universidades tem pouco contato
com a atenção primária à saúde, que é a estratégia de Saúde da Família. Os
estudantes nem conhecem e tem um discurso do senso comum e dos próprios médicos
de que a saúde pública é inferior, para pobre, que não tem condição de pagar
serviço de saúde de qualidade. Isso precisa aparecer de uma forma mais presente
na graduação dos médicos, para que os preconceitos desapareçam”, declarou.
Penha acredita que é preciso também regular a influência que
a iniciativa privada exerce na saúde pública. “O cerne é conseguirmos
concretizar uma política pública de saúde de qualidade e regular o mercado.
Para termos um sistema público e universal, precisamos de pessoas que trabalhem
nele, que sejam voltados a ele. Hoje temos a formação na esfera pública, mas o
discurso privado é muito forte, priorizando especializações que fogem da área
social”, criticou.
Scheffer concorda que o currículo dos cursos deve estar
referenciado na sociedade. “Vinte mil médicos são formados todo ano. Os cursos
precisam formar profissionais com perfil adequado para a área social, para
levar a lugares distantes onde não há médicos. E isso só vamos conseguir com
políticas publicas de saúde, remuneração e valorização desses médicos”,
afirmou.
Mais Médicos
O Programa Mais Médicos, além de levar médicos para áreas
carentes e remotas, propõe medidas que pretendem mudar a lógica da formação de
medicina no país. Um alvo dessas mudanças são as diretrizes curriculares dos
cursos de medicina, dando um foco maior à atenção primária e a abertura de
novos cursos e vagas.
Renato acredita que as ações do Mais Médicos podem ser um
começo para estruturar um sistema público eficiente. “Há dificuldades de
estruturar nosso sistema público de saúde, para que além de formado nele, o
profissional seja ativo nele. Por mais que façamos todas iniciativas possíveis
e imagináveis, se não mudarmos isso, não vamos avançar”, aposta.
O programa tem como meta, de acordo com o Ministério da
Saúde, a criação de 11,5 mil novas vagas de graduação em medicina e 12,4 mil de
residência médica, nas áreas prioritárias para o SUS até 2018.
Seguindo essas diretrizes, o Ministério da Educação (MEC)
lançou edital no início de abril para abrir mais de 1.800 vagas em cursos de
medicina, em universidades particulares de 22 cidades de oito estados das regiões
Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Desta forma, prevê o edital, locais com menor
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e detentores de altas taxas de
desigualdade social serão contemplados.
Scheffer aposta na mudança no currículo como meio para que
mais profissionais pratiquem medicina social. “Fixar médicos em locais remotos
é uma dificuldade em todos os países, não há uma formula para resolver o
problema. Outros países ja tentaram de tudo, como oferta de salários altos,
contratação de médicos estrangeiros, bônus financeiro. Mas os países que
tiveram maior sucesso foram os que mudaram a formação, para que os médicos se
interessassem por esse perfil social da medicina”, apontou.
Para Joana, a medida é positiva. “A ação imediata de trazer
os médicos é importante, mas a ação a longo prazo, que é formar mais médicos e
mudar o tipo da especialização, tornando a residência obrigatória a todos
estudantes, pode regular essa lógica de especializações que são feitas a partir
dos interesses da categoria, sem levar em conta as necessidades da população”,
conclui.
Interiorização
Para Scheffer, as vagas novas, por serem em universidades
particulares, não vão democratizar o acesso aos cursos de medicina para os mais
pobres, mantendo o mesmo perfil elitizado de estudantes na universidade. “A
política de abertura de novos cursos e expansão de vagas em medicina não dá
sinais de que isso vá ser acompanhado de uma democratização do acesso, por
afastar a maioria dos beneficiários do Fies e Prouni, por conta das
mensalidades caras e do vestibular concorrido nas universidades públicas”.
O MEC informou, por meio de nota à reportagem, que o edital
de chamada para abertura de novos cursos de medicina buscou garantir critérios
para que se tenha uma maior inclusão social, como a seleção dos municípios em
regiões carentes e que sejam desprovidas de cursos de medicina. Para selecionar
essas áreas, serão oferecidas pontuações extras, por exemplo, para aqueles que
apresentarem um Plano de Ofertas de Bolsas para alunos com base em critérios socioeconômicos.
"O programa objetiva oportunizar às populações destes
municípios a acessarem estas vagas, tanto pelo programa de bolsas que
obrigatoriamente deverá ser ofertado pelas IES [Instituições de Ensino
Superior] selecionadas, como considerando, complementarmente, os demais
programas de financiamento e inclusão já existentes no MEC, como o Prouni
[Programa Universidade Para Todos], o Fies [Financiamento Estudantil] e a
política de cotas que deve ser obedecida nos termos da lei”, assinala a nota.
Contato com
este blog: conslocsaudepompeia@gmail.com.
Nenhum comentário:
Postar um comentário