REVOLVENDO O SOLO DA RECUPERAÇÃO
Marcelo
Ribeiro*
Muitas
pessoas acreditam – e infelizmente boa
parte delas, profissionais da saúde – que a desintoxicação não passa do ato de se observar o usuário intoxicado por
algumas horas no pronto-socorro, deitado numa cama, “tomando um sorinho na
veia”.
Chuvas torrenciais
ininterruptas, meses a fio, para muito além da capacidade de absorção daquele
terreno. Alagamentos persistentes. Desaparecimento da camada de húmus e da
microfauna revolvedora do solo.
Certamente, esse estado de acúmulo de águas persistirá mesmo após o
término das chuvas.
Aos poucos, o terreno
alagado se converterá em uma gigantesca poça de lama e essa, em uma lâmina de
aparência rígida, endurecida pela ação persistente e calcinante da luz
solar. Vem a craquelagem das placas:
frestas úmidas vão aos poucos se desfazendo em terra e poeira as quais, com o
passar do tempo, formam uma camada de terra seca, que vai puxando cada vez mais
para a superfície a água que encharcou e se acumulou no solo.
Com o cair das chuvas
esperadas da estação, que umidificam o solo no ritmo da natureza, os brotos de
mato e gramíneas começam a enraizar timidamente no chão de terra. Logo adiante
ele voltará a ser perfurado por minhocas e insetos construtores ou se
converterá em berçário para larvas de todos os gêneros. Ainda assim, em algumas situações será
necessária a recuperação química e biológica desse solo, pela utilização de
fertilizantes orgânicos ou de adubos minerais.
Após alguns ciclos de
vida animal e vegetal, mesmo à custa de raízes filiformes, arbustos modestos e
pequeníssimos insetos, novamente uma camada de húmus poderá se formar, ganhando
consistência, até se converter em serrapilheira – uma camada generosa de
material orgânico, em diferentes estágios de decomposição, por intermédio da
qual os nutrientes finalmente voltarão a ser filtrados e retornarão ao solo de
forma natural, tornando-o progressivamente mais fértil e, a cada estação, mais
propício para ser revolvido e cultivado novamente.
Muitas pessoas
acreditam – e infelizmente boa parte delas, profissionais da saúde – que a
desintoxicação não passa do ato de se observar o usuário intoxicado por algumas
horas no pronto-socorro, deitado numa cama, “tomando um sorinho na veia”. Para eles, desintoxicar é, literalmente,
deixar a “droga” sair do organismo. Um
grave equívoco. Isso é apenas e tão somente o término das “chuvas psicoativas
torrenciais”. Quase a totalidade das substâncias psicoativas é eliminada do
organismo em menos de vinte e quatro horas, mas os efeitos neurotóxicos e
inflamatórios, bem como as neuroadaptações que o uso crônico provoca sobre o
“solo cerebral e mental” não acabam com o raiar da abstinência.
A desintoxicação –
apesar de não possuir um parâmetro de tempo preciso – se estende para além da
ideia da mera interrupção do uso, para englobar, minimamente, um período
inicial de resolução de sintomas de abstinência, no qual o cérebro começa a
readaptar o seu funcionamento, sem a presença da droga. Mesmo na ausência das síndromes de
abstinência mais clássicas, como as do álcool e dos opioides, que duram em
média de três a setes dias – de acordo com a gravidade da dependência – os dias
que se sucedem à parada do uso, em geral, trazem a marca desse estado de
amolecimento, da lama, do tédio, dos estados indiferenciados – com frequência,
sintomas psiquiátricos desses primeiros tempos, de maneira isolada ou
combinada, estruturam síndromes que se assemelham, mas não se comportam
exatamente como os transtornos mentais classicamente descritos, são instáveis e
propensas à labilidade, misturando algumas vezes mais de um tipo de transtorno,
num verdadeiro mosaico psicopatológico.
Tais sintomas tendem à
melhora – espontânea ou sob medicação – , conforme o estado psíquico do usuário
em abstinência vai ganhando estabilidade, forma, se estruturando – são as tais placas de barro. Mas tudo é ainda muito frágil: há pouquíssimo
espaço para se trabalhar conteúdos de natureza cognitiva ou profunda – pelo
contrário, é o momento de se oferecer atividades suportivas, estruturadas em
grupos motivacionais, de terapia-ocupacional, ou de mútua-ajuda. Medicamentos auxiliam a resolução dos
sintomas psiquiátricos primários ou secundários, que reduzem a vontade ou o
comportamento de busca, nesse sistema nervoso emocionalmente lábil e ainda
pouco capaz de articulações, e protegem o “solo cerebral”, favorecendo o processo
de recuperação.
A desintoxicação deve
se estender até esse período, em geral, entre quinze e trinta dias, podendo se
alongar um pouco mais, nos casos de maior gravidade. O modelo habitual se dá em enfermarias
psiquiátricas, dentro da perspectiva multidisciplinar, voltada à construção de
um diagnóstico que elucide a gravidade da dependência, as doenças
clínicas-gerais e psiquiátricas associadas (comorbidades), os fatores de crise
relacionados ao quadro atual, a motivação da pessoa para o tratamento e os
fatores de proteção e risco vigentes, com ênfase na família e nas habilidades
do indivíduo. A desintoxicação também
pode se dar ambulatorialmente, eventualmente com apoio de visitas domiciliares,
residências terapêuticas, hospitais-dia e acompanhantes terapêuticos.
A fase de “formação do
chão de terra” marca o retorno de um funcionamento mais articulado do
psiquismo. Mais uma vez, a pessoa voltou
a ter uma “camada seca” estruturada, pré-frontal, capaz de oferecer uma
interface entre o seu sistema nervoso “mais profundo” – mamífero e reptiliano –
e as demandas socioculturais que o cercam.
É o momento em que o usuário que “só falava de droga”, aparentemente de
maneira súbita, começa a ampliar o seu repertório social, a ter outros anseios,
retomar assuntos antigos. Com a chegada
das “chuvas neuroquímicas fisiológicas”, juntamente com as novas conexões
sinápticas, que brotam timidamente, novos padrões de comportamento começam a
ser moldados, na forma de desejos e formulação de planos futuros, especialmente
quando acontecem dentro de ambientes relacionados à cultura de recuperação.
Mas a estrutura
cerebral desenvolvida até aqui ainda carece de capacidade inibitória, ou seja,
está longe de resistir às investidas torrenciais e fissurentas do desejo de
consumo. Nesse contexto, qualquer
retorno de chuvas psicoativas – sejam elas garoas ou tempestades – é
potencialmente desastroso: a
estruturação cortical está começando a arriscar os seus primeiros brotos
voltados para a ideia da recuperação e da mudança de estilo de vida. O sistema
nervoso ainda se encontra “túrgido” de gatilhos que facilmente o levariam de
volta ao consumo, não fossem as curvas-de-nível, as telas e coberturas e demais
estratégias de blindagem e monitoramento – muitas vezes intensivo –, com o
intuito de proteger o solo, enquanto ele próprio não vai criando sua camada de proteção.
A estruturação da
serrapilheira, após ciclos sucessivos de objetivos e metas ora frustrados, ora
aprendidos, ora atingidos – sempre substrato de amadurecimento –, marca a
reconquista da autonomia, a partir da estruturação de um sistema de filtros que
retira dos erros e acertos, bem como das
conquistas provenientes da abstinência, o substrato energético que fortalecerá
o patrimônio mental da pessoa – e do seu processo de recuperação.
* Marcelo Ribeiro, psiquiatra, membro
do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psiquiatra da Universidade
Federal de São Paulo (Unifesp), docente do Curso de Medicina da Universidade
Nove de Julho (Uninove), diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e
outras Drogas (Cratod) da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo,
presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo (Coned).