Marcelo Ribeiro*
A doença mental continua a ser
encarada pela maioria das pessoas com receio e desconfiança – para elas, o doente mental carece de
estabilidade, podendo, inclusive, se tornar alguém perigoso. O peso desse preconceito dentro da
maioria das sociedades ocidentais – que valorizam a individualidade e sua
capacidade cognitiva de tomar decisões de modo racional, informado e estável –
é enorme.
Pouco se considera, no entanto, que a doença mental possui
atualmente, propostas
de tratamento de altíssima efetividade – medicamentoso,
psicoterápico e reabilitativo. A penúltima cena do filme “Uma mente brilhante” (A beautiful mind, Ron
Howard, 2001), quando o professor John Nash (1928-2015) conversa no salão de chá
da Universidade de Princeton com um emissário do Prêmio Nobel –
interessado em saber se a manifestação de sua doença poderia comprometer a
cerimônia real de entrega do prêmio –, deixa claro essa nova perspectiva:
apesar de gravemente
esquizofrênico, ao longo do seu processo de tratamento – graças ao apoio da
esposa e dos amigos, dos medicamentos e demais abordagens psicossociais não
retratadas no filme – ele conseguiu entender o “seu apetite por padrões” e as
coisas que via como processos autônomos da sua doença, e, num dado instante,
conseguiu escolher não dar mais atenção a eles. Voltar a fazer
escolhas relacionadas ao transtorno mental: eis a chave para a retomada da
autonomia no que tange às limitações originárias dos sintomas dessas doenças.
Além disso, nem sempre os processos patológicos da doença dominam
o funcionamento psíquico como um todo, ou seja, em muitos casos é plenamente possível conviver com as limitações
da doença mental, com baixíssimo impacto sobre o funcionamento individual –
especialmente quando essas são tratadas adequadamente; lembre-se: voltar a fazer escolhas, apesar
da existência de processos autônomos da doença, eis
o marcador de sucesso.
Nesse sentido, o Professor Nash, após décadas de isolamento,
em decorrência de um quadro psicótico extremamente grave, experimentou o
despertar de uma numa consciência – pelos medicamentos, pelas terapias – que o
colocou novamente em contato com o mundo estudantil – pelo qual, felizmente,
foi muito bem acolhido. Diferentemente das outras vezes, porém, ao invés
de enxergar a doença como um “momento de revelação”, o professor procurou
encarar o patrimônio
psíquico e psicossocial que conquistara – e
reconquistara – a partir de sua melhora, como a verdadeira expressão da
verdade.
O restante não passava da expressão autônoma de sua
doença, a qual, ao impedi-lo de agir com alteridade e de entender
a lógica do outro, condenava-o a viver angustiadamente enclausurado em
seu mundo infalível e perfeito. Como consequência de sua melhora clínica,
assumiu a responsabilidade de conviver com os processos autônomos de sua doença
pelo resto de sua vida – sem negá-los, sem se lamentar por possuí-los e, mais
ainda, longe de ceder aos seus apelos sedutores e patológicos, travestidos de
“expressões do âmago do meu ser”, “gritos de liberdade” ou “rompantes de genialidade” –
tudo isso passou a ter apenas um único nome: delírio. O verdadeiro pacto de
liberdade do professor Nash enfim se deu, coroado, brilhantemente – com o
perdão do trocadilho redundante –, com a diplomação do professor pela rainha da
Suécia em pessoa.
Para a maioria dos dependentes de substâncias psicoativas, a
expressão de sua doença não chega a desestruturar todo o seu aparato
psíquico. Pelo contrário, muitas vezes o usuário está aparentemente tão
preservado que boa parte do seu entorno tem dificuldade em detectar alguma patologia
no seu funcionamento. Além disso, pessoas do seu círculo
mais íntimo quase sempre reconhecem – e gostam de afirmar com razão – que o
usuário de substâncias psicoativas também tem um lado bom e saudável: “Ele
sempre foi um menino tão inteligente, doutor, sensível”, “nossa, tirando as
drogas, o João é uma graça de pessoa, companheirão!”, “você precisa ver esse cara
pintando, nem parece a mesma pessoa”, “ele tem um coração de ouro,
tamanha a sua generosidade”.
Talvez seja esse um dos componentes mais graves da
dependência: sua capacidade de criar mecanismos secretos e obscuros de
funcionamento paralelo, providos de mimetismo, os quais por vezes tomam a
função consciente de assalto, realizam seus desejos mais fissurados e
impulsivos, para em seguida desaparecerem novamente sob uma névoa do
arrependimento e de “mentiras-sinceras” acerca de um futuro melhor.
No entanto, a partir do instante em que o comportamento
disfuncional é reconhecido pelo paciente, sua reação inicial é, muito
frequentemente, de decepção consigo mesmo, de desesperança com relação o futuro
– “tenho
tanto a conquistar, perdi muito tempo e talvez não seja tão bom quanto pensava”, ou “não tenho o mesmo gás de antes”.
O usuário em início de tratamento muitas vezes se sente miserable.
O seu “lado bom e saudável” é esquecido.
Essa visão fatalista se equipara ao drama do fazendeiro que
possuía uma bela propriedade, dotada de terras férteis, a partir das quais
cultivou belos campos de cereais, plantou pastagens verdejantes de tão
saborosas, nas quais criou espécimes bovinos e ovinos. Aos poucos, construiu uma bela sede, tinha
uma família, vivia tranquilo. Acontece que a zona de
pastagem da referida propriedade fazia fronteira com um pequeno pântano,
aparentemente sem atrativos, além de ser habitado por crocodilos enormes e
felinos famintos, além de roedores intrusos, que atacavam suas criações e
invadiam seus silos.
Tendo em vista o fácil acesso ao mundo de riquezas do fazendeiro,
os predadores da lama começaram a se proliferar, se transformando em
verdadeiras pragas, muitas vezes se aproximando perigosamente, inclusive de
membros de sua família.
Injustiçado:
era assim como se sentia – além de possuir um
problema aparentemente fora de controle, que o vitimava a todo o instante, não
tinha mais energia para drenar aquele pântano, para afastar definitivamente as
pragas e feras que ali viviam. Sua realidade era tremendamente
difícil: proprietário de uma extensão pantanosa, a qual nunca se
prestaria à construção de estruturas sólidas de uma fazenda regular, tais como moradias de colonos, barracões
e paióis. Nunca colheria dali um único grão de cereal sequer.
Paulatinamente, o camponês começou a sentir que suas energias de
desbravador o abandonavam – parecia fadado ao marasmo dos vitimizados.
Resignação e revolta se alternavam em sua alma cada vez mais desprovida de paz.
Foi quando entendeu que a “viabilidade” não consistia em eliminar o
pântano, mas sim encará-lo de modo realista, incorporando-o dentro do possível,
sem deixar de se precaver contra as suas vicissitudes. Desenvolveu,
então, aos poucos, mecanismos para vedar melhor os seus silos, transferiu suas pastagens para
uma terra mais elevada e distante da região pantaneira, pensou um sistema de vigilância
contra onças e suçuaranas, introduziu controles de pragas,
ao mesmo tempo em que desenvolveu tecnologias capazes de interligar o pântano
ao restante da propriedade – construiu uma ponte e
aterrou um pequeno estreito, que permitiram um escoamento mais rápido e seguro
do gado, além da passagem de veículos. Por meio de diques, evitou as
cheias com maior poder de destruição, direcionando aquelas águas para um
reservatório destinado a criação de tilápias. Com palafitas, estruturou uma
usina para a extração de turfa, uma matriz energética capaz
de servir tanto como adubo, quanto como combustível sólido para alimentar a
caldeira destinada ao aquecimento da água de sua residência. Por fim, sentindo o retorno econômico de
sua empreitada bem-sucedida, construiu um belíssimo
pesqueiro, lindamente pergolado, o qual se transformou no ponto de encontro de
sua família e dos amigos daquela região.
Há uma romantização excessiva e proposital, com
toques pollyânicos,
nessa metáfora do psiquismo adoecido, com o intuito de apontar que se o
transtorno mental não pode ser visto como uma “fonte de riqueza perdida”, à
espera de exploração e prosperidade ou “um diamante bruto” pronto para ser
lapidado, também não deve ser considerado a nascente de todos os males na vida
de alguém. Há
maneiras de lidar com ele, partindo de sua própria
natureza, enfrentando o que é possível enfrentar por intermédio da farmacoterapia
e da psicoterapia, assimilando limites, aprendendo com os fracassos e
superações, potencializando o “lado saudável” que nos habita.
Ninguém até hoje tentou reverter um infarto, uma lesão de menisco ou uma
queimadura – da mesma maneira, não há notícia de programas de
tratamentos que se proponham a “curar” a hipertensão ou o diabetes, a ponto do
“ex-doente” voltar a se refestelar de carne seca ou de leite-condensado ao
bel-prazer de sua vontade. Do contrário, na vigência da lesão ou da
alteração fisiológica disfuncional – e sim, a doença mental é um desses casos
–, a
solução é se adaptar, cuidando para estancar o processo
fisiopatológico em curso, ao mesmo tempo em que se evoca da porção saudável do
organismo o melhor que ele tem a oferecer. Todo esse trabalho, no final,
sempre acaba se transformando em um grande e maravilhoso patrimônio psíquico,
motivo de orgulho tanto para o seu proprietário, quanto para aqueles que passam
a ter o prazer e o privilégio de desfrutar deste convívio pautado pelo possível.
*Marcelo Ribeiro, psiquiatra, membro do
Programa de Pós-graduação do Departamento de Psiquiatra da Universidade Federal
de São Paulo (Unifesp), docente do Curso de Medicina da Universidade Nove de
Julho (Uninove), diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras
Drogas (Cratod) da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, presidente do
Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo (Coned).