Marcelo Ribeiro*
O monitoramento é considerado um componente
essencial do cuidado das pessoas que sofrem com a dependência química –
ou com qualquer outro tipo de compulsão.
Ele parte do princípio que a porção consciente do
cérebro – a região cortical – por mais que esteja disposta a dizer “sim” para
um projeto de mudança de comportamento, encontra-se enfraquecida, desvitalizada
– tanto do ponto de vista neurobiológico, quanto da estrutura psicossocial –
para dizer “não” às oportunidades de consumo.
Como resultado desse desbalanço, promessas e ímpetos
de mudança – quase sempre sinceros e lastreados pelas mais nobres convicções
pessoais – são quebradas e refreados com tamanha facilidade, que o usuário,
perante essa incomensurável e incompreensível discrepância – pelo olhar da
família e do seu entorno sociocultural –, vai paulatinamente sendo esvaziado de
sua autonomia, passando a ser visto como ingênuo, irresponsável, louco,
manipulador, enfim, alguém no mínimo desprovido de credibilidade social e não
digno de confiança.
Quando o desejo de recuperação resplandece no
horizonte da mudança, o descrédito – fruto de perdas sucessivas, de acordos
rompidos e de planos de retomada fracassados – é, em geral, o ponto de partida
da maior parte dos dependentes. Tal
insegurança emana não apenas da dúvida acerca da capacidade do dependente de
permanecer longe do consumo de substâncias psicoativas: ela coloca igualmente
em xeque sua capacidade de ser previsível e estável perante os novos acordos
sociais e combinados terapêuticos firmados, os mesmos que outrora foram
facilmente descartados diante dos apelos do consumo.
Em geral, o monitoramento se inicia pela elaboração
de um contrato terapêutico, que estabelece rotinas, testagens de drogas,
utilização de medicamentos e outros compromissos. Ao invés de um “big brother
is watching you”, um agente repressor ou um meio de uma tutela infantilizante,
o monitoramento é, na realidade, uma carta magna, com os direitos, deveres e
suas consequências – tanto para o paciente, quanto para a família –, cujo
objetivo primordial é estruturar um funcionamento psíquico mais democrático,
num lugar outrora tomado pelo governo despótico e imediatista da dependência.
O monitoramento tem dupla função. Em primeiro lugar – na vigência do desejo
sincero e motivado em dizer “sim” para abstinência – fortalece a capacidade da
pessoa de dizer “não” aos apelos do consumo, uma vez que que o monitoramento,
além de reduzir e dificultar o acesso às oportunidades de consumo, também
impossibilita que eventuais lapsos permaneçam perigosamente em segredo,
ganhando força e se repetindo, até se converterem em recaídas, que reinstalam
todo o processo de dependência. É
extremamente interessante notar, como o dependente que tentava omitir suas
recaídas de maneira impetuosa e arrogante, nos primeiros tempos do tratamento,
assume com naturalidade e orgulho uma postura mais ética perante suas recaídas
– passando a assumi-las com naturalidade
e sinceridade, buscando soluções conjuntas com a equipe de tratamento e
assumindo o ônus dessa intercorrência – quando as chances de consumir
ocultamente são vedadas pela instituição, em comum acordo, de testes de drogas
na urina. A vontade de dizer “sim” foi
privilegiada, ao invés de condutas altamente passíveis de ambivalência. O
resultado disso é chamado de amadurecimento e aumento da assertividade.
Em segundo lugar, o monitoramento é o principal
recurso que o usuário tem contra o descredito social que o cerca. Nos primeiros tempos do tratamento, seguir
regras e prestar contas é altamente estruturante para ele. Regras que se pautam inicialmente em torno
das providencias que precisam ser tomadas a fim de garantir a abstinência, bem
como o comparecimento ao tratamento e às atividades instituídas para ocupar o
espaço que antes pertencia às rotinas de uso.
O monitoramento demonstra ininterruptamente – para o usuário, para a
equipe de tratamento e para a família – que o dependente é capaz de se manter
abstinente, ao mesmo tempo em que se envolve em uma nova estrutura e estilo de
vida. Uma coisa levando à outra, o
propósito de uma fortalecendo o propósito da outra, até o trio
paciente-família-tratamento se sentir mutuamente fortalecido para estabelecer
laços de confiança independentemente de testemunhas ou marcadores.
A presença do monitoramento, quanto instituído na
intensidade correta, confere grande tranquilidade ao usuário, uma vez que o
alivia tanto dos apelos e das oportunidades de uso, quanto do estresse
proveniente do receio e da desconfiança do seu entorno em relação a sua
capacidade de permanecer “na linha”.
Mas… qual é o momento de encerrá-lo, ou, pelo menos, diminuir sua
intensidade? Na prática, após algumas
semanas – meses até – muitos pacientes, começam a ver o monitoramento como um
grande incômodo, um cerceamento de sua liberdade.
Acontece que o critério não é temporal. Tal qual um
osso fraturado, que necessita de um tempo de imobilização, seguido de
fisioterapia e aumento progressivo de carga, o monitoramento se presta a
auxiliar um processo – em parte biológico, em parte psicossocial – que
necessita de proteção para suscitar uma recuperação saudável, vigorosa e
estável. O ortopedista tem o tempo como
referencial, principalmente para orientar os seus pacientes – ele sabe, no
entanto, que o responsável pela resolução da fratura não é o tempo, mas sim o
processo de consolidação do osso – tendo no molde de gesso apenas uma garantia
de proteção contra solavancos.
Trazendo o mesmo raciocínio para o tratamento da
dependência química, considerando o monitoramento como o gesso imobilizador, é
o processo de consolidação da mudança pretendida – e não o tempo – que deve
poder ser visto como critério para a sua retirada. Assim como na ortopedia, a reestruturação
biológica do cérebro – a partir da abstinência monitorada –, por si só, já é um
fator de melhora e de ampliação do campo vivencial do indivíduo – especialmente
quando moldada por abordagens psicossociais adequadas. Infelizmente, a clínica da dependência não
conta com raios-x, tomografias e ressonâncias para avaliar concretamente esse
fato clínico.
Dessa forma, a investigação que se faz nesse sentido
é: que tipo de ganho, conquista ou aquisição de “patrimônio psíquico” são
oriundos do processo de tratamento instituído, na vigência do monitoramento? O
usuário se assenhorou de rotinas e novos comportamentos de um modo natural e
responsável, com o se o monitoramento não existisse? A partir do monitoramento,
o usuário vivenciou o prazer de singrar por “mares nunca dantes navegados” –
por exemplo, teve um semestre bem-sucedido na faculdade, começou a reconquistar
prestígio em seu trabalho, passou a
encarar problemas de um modo mais assertivo, graças a um envolvimento real em
sua terapia e reuniões em salas de mútua-ajuda?
Revisitou o seu passado com o intuito de superar adversidades e se
tornar uma pessoa mais autônoma, ao invés de procurar culpados? Eis o processo de consolidação da mudança –
facilitado pela presença da abstinência, mas nunca gerado espontânea ou
milagrosamente por ela.
Não existe um método consensual para gerenciar a
vigência e a intensidade do monitoramento.
Alguns precisarão ser monitorados por poucas semanas, partindo de
acordos eminentemente verbais, enquanto outros, precisarão de acompanhantes
vinte e quatro horas por dia, sessões com mais de um profissional algumas vezes
na semana, grupos de mútua-ajuda, testagem de drogas e uso de medicamentos
aversivos, meses a fio. Reuniões com
familiares para discutir crises e recaídas são comuns nos primeiros tempos.
Períodos de internação breves não estão descartados. Alguns indivíduos apresentarão ganhos
incríveis a partir desse método, os quais possibilitarão a instituição de
medidas de monitoramento progressivamente menos intensivas, enquanto outros
apresentarão estabilidade apenas enquanto estiverem monitorados.
Ao final, haverá um grupo amplamente autônomo e
livre de qualquer monitoramento, outro grupo autônomo graças à manutenção de
algum tipo de monitoramento – ainda que seja uma sessão quinzenal de terapia ou
comparecimento mensal a uma reunião de mútua-ajuda – e um terceiro grupo, para
o qual o monitoramento funciona praticamente como um cuidado paliativo,
trazendo o benefício da abstinência ou da redução do consumo enquanto ele está
vigente, sem que tal ganho se converta em aumento de crítica ou de estruturação
de autonomia por parte do usuário.
Voltando à ortopedia, alguns processos de
consolidação requerem meses de repouso acamado, seguidos por um período ainda
maior de fisioterapia. Muitas vezes,
pinos, fios e arames metálicos permanecerão para sempre como parte da estrutura
óssea. Pode ser que o acidentado tenha
que conviver definitivamente com algum tipo de limitação de movimento. Ainda assim, por mais que se reclame dos
meses acamados ou da bota de gesso, o ortopedista não é encarado como o agente
“cerceador de liberdade”, por mais frio, autoritário e distante que possa
parecer. A vida pode ser entediante, mas
a causa disso não é a conduta médica em curso, mas, sim, o acidente causador da
fratura. Além disso, a reconquista da
autonomia do movimento vai superando as adversidades, motivando novos desafios.
Eis o espírito da recuperação, em parte tão
assemelhado aos preceitos da ortopedia: assumir a devida responsabilidade tanto
pelo processo de consolidação da mudança, quanto pelo gerenciamento dos
processos autônomos da doença, arcando com as consequências das escolhas feitas
no passado, conforme os limites que nortearão o futuro vão sendo assimilados. Depois disso, já dá para pensar em tirar o
gesso – mas experimente perguntar ao ortopedista se o tratamento da fratura
consolidada acabou por aí.
* Marcelo Ribeiro, psiquiatra, membro do
Programa de Pós-graduação do Departamento de Psiquiatra da Universidade Federal
de São Paulo (Unifesp), docente do Curso de Medicina da Universidade Nove de
Julho (Uninove), diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras
Drogas (Cratod) da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo, presidente do
Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo (Coned).
Contato
com este blog: conslocsaudepompeia@gmail.com.
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