MATRIX
RELAPSED
Relapse
[inglês] = recaída
Marcelo Ribeiro*
“No
campo pragmático da recuperação, o usuário de substâncias psicoativas muitas
vezes chega para consultas queixando-se de piora, dizendo-se absolutamente
tomado pelo tédio e pela tristeza, subjugado e oprimido por regras que não
fazem o menor sentido”.
A
ontológica trilogia Matrix [Lilly & Lana Wachowski, 1999-2003], conta a
epopeia do herói cibernético Neo, que descobre, com a ajuda Morpheus e sua
trupe, que toda a humanidade – inclusive ele próprio – se encontrava, na
realidade, adormecida e aprisionada dentro de “cápsulas amnióticas”, por meio
das quais conectores e fios elétricos extraiam dos seres humanos toda a sua
bioenergia.
Durante
o zênite da revolução tecnológica, máquinas dotadas de inteligência artificial
travaram um conflito mortal contra os humanos, vencido por elas no final. Como
consequência, os vencidos foram colocados em um sono profundo, enquanto sua
mente era conectada a uma espécie de simulador de realidade virtual interativa,
chamada Matrix, por influência do qual imaginavam estar acordados, em
atividade, levando suas vidas humanas de sempre.
Na
realidade, porém, o mundo natural e a civilização como concebidos pela
humanidade, haviam se transformado em destroços e ruínas, recobertos por uma
sombra inóspita e hostil, que impedia para sempre a incidência da luz solar.
Suas maravilhas de outrora viviam apenas na realidade artificial da Matrix,
construída pelas máquinas sorvedoras de bioenergia, apenas para ludibriar os
humanos.
Neo,
Morpheus e seus amigos, livres das amarras do alheamento inebriante da Matrix,
começam procurar meios de reconstruir a civilização humana partindo de
fundamentos reais e concretos. Os poucos
humanos que conseguiram se libertar criaram a resistência, que se concentrava
numa cidade subterrânea onde os humanos nasciam livres, chamada Zion.
Frequentemente, porém, sofriam perigosos reveses e ataques, como a traição de
um de seus membros, Cypher, que vendeu sua “alma cibernética” ao
“sistema”, decidindo entregar os amigos
às máquinas e retornar ao seu casulo opressor, desde que, ao ser reconectado à
Matrix, passasse a ser alguém “rico”, “alguém importante”, “um artista” – “a
ignorância é uma benção”, conclui.
Pensando
a recuperação como essa nova disposição da consciência (“Neo”, é o prefixo
grego para “novo”), que retira o usuário do sonho inebriante da dependência
(Morfeu era o deus do sonho, na mitologia grego-romana), um longo percurso
subterrâneo, guiado pela ideia da recuperação se abriu perante os heróis da
trilogia, cujo objetivo revolucionário consistia não apenas em construir um
novo mundo (Zion ou Sião, se refere à Terra Prometida bíblica), partindo de
bases sólidas e duradouras – ainda que de início protegidas contra os ataques
certeiros do inimigo, nos subterrâneos da psique –, como também desconfigurar
para sempre aquele alheamento criado justamente para enfraquecer os propósitos
da consciência acerca da recuperação – como um vírus da “cultura de consumo”: a
Matrix.
Nesse
sentido, a “Matrix Relapsed”, cuja capacidade de arregimentar soldados
revolucionários menos motivados – como Cypher, um apelido para Lúcifer – quase
colocou em xeque um projeto de enfrentamento e de autoconhecimento extremamente
complexo e pacientemente planejado, o qual, tendo sido executado no espírito
das regras e com trabalho em equipe, permitiu ao herói desvendar os mistérios
mais recônditos da recuperação, para, finalmente, sair da postura defensiva
para a de enfrentamento assertivo.
continua
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No
campo pragmático da recuperação, o usuário de substâncias psicoativas muitas
vezes chega para consultas queixando-se de piora, dizendo-se absolutamente
tomado pelo tédio e pela tristeza, subjugado e oprimido por regras que não
fazem o menor sentido. Passa, então, a
questionar os métodos terapêuticos instituídos, responsabilizando-os por seu
estado de humor deprimido e “entrevado”, enxergando a possiblidade de consumir
eventualmente – ou mesmo de retornar ao período habitual de uso, “só que agora
de modo mais controlado” –, não apenas como uma possiblidade real, como a
solução para todos os males causados em sua vida até então.
Parecem
momentos de dissociação “propositadamente arquitetados” pelo desejo cerebral
límbico de continuar a consumir drogas de modo indefinido. Muitas vezes, o
estado da pessoa está inquestionavelmente melhor – inclusive com ganhos
decorrentes da abstinência –, mas ela segue se sentindo mal, “na pior” – é como
se a mente fosse capaz de criar uma anti-Matrix, devastada, sem vida e
opressiva, cuja porta de saída pudesse ser aberta apenas pelos códigos
misteriosos do consumo de substâncias psicoativas. Outras vezes, aquilo que
fora instituído pelo tratamento e que parecia trazer ao menos alguma
satisfação, perde o sentido, o mesmo “vazio existencial” reaparece e uma bruma
densa de tédio recobre todos os ganhos – parece que as bases desse “mundo novo”
perderam o sentido. Ou ainda, apesar de
as coisas estarem “indo muito bem”, repentinamente, o paciente parou de ir à
terapia, faz duas semanas que parou a academia, faltou a semana passada e voltou
ao mesmo marasmo dos tempos de consumo. No retorno à consulta, relata os fatos
como se fossem meras ocorrências, decisões aparentemente irrelevantes, em meio
a uma indiferença afetiva que não estava ali há poucas semanas.
Em
todos os casos anteriores, as soluções propostas e os desfechos esperados
parecem óbvios: voltar a consumir seria a única solução possível para aquele
momento de extrema aridez psicossocial, de indiferença afetiva e desamparo
psíquico. Lágrimas altamente convincentes de dor e desconsolo brotam dos olhos
dos pacientes e escorrem por suas faces. Mais uma vez, o cérebro do usuário
parece ser dotado de um magnífico e avançado “simulador de realidade virtual”
que, partindo de premissas messiânicas e saudosistas, lhe apresenta soluções
absolutamente distorcidas que desconsideram totalmente o passado recente de
consumo.
Dessa
forma, a usuária de álcool, abstinente há seis meses, visivelmente mais ativa,
com rotinas pragmáticas, mais próxima dos seus relacionamentos e em fase de
franca superação clínica de um quadro de cirrose hepática e de neuropatia
periférica, a qual já comprometia seriamente sua marcha, começou a faltar às
consultas e a beber escondida, até que, numa certa manhã fora flagrada por sua
mãe, misturando uísque no café. Na consulta seguinte, em meio a choros e a queixas
depressivas, relatou não suportar mais aquela vida vazia e sem prazer, que as
dúvidas levantadas pela família e a equipe médica sobre o seu proceder eram
intoleráveis, alegando ter o direito de poder decidir se voltaria beber
“socialmente”.
Em
nenhum instante, porém, se lembrou de que há poucos meses estava literalmente
restrita a sua cama – na verdade, sua “cápsula” –, devido a dificuldades de
locomoção, dores lancinantes e sintomas de desconforto psíquico graves,
aliviados momentaneamente pelo uso de vodca que fazia desde a manhã até o
anoitecer – tudo aquilo estava superado
naquele momento, graças a sua dedicação ao tratamento e à abstinência
que conquistara, partindo de bases reais e concretas. Os subterrâneos da
construção de sua “terra prometida” pareciam, porém, intoleráveis para
ela. Pediu para voltar à Matrix.
Outro
usuário de álcool decidiu interromper o consumo de bebidas depois de um período
de anos consumindo pelo menos um litro
de destilado por dia, que o relegou, da mesma forma que a paciente anterior, ao
âmbito doméstico, afastado de suas atividades profissionais e fazendo todos os
seus relacionamentos íntimos orbitarem ao redor de suas rotinas de consumo –
cada vez mais rígidas e previsíveis.
Acabou, assim, “encapsulado” pelos seus hábitos de consumo
“estreitados”, caricatos e rotineiros – cada vez mais destinados a aliviar
sintomas de abstinência –, indiferente a tudo, exceto a suas rotinas de
consumo. Totalmente aprisionado.
O
período inicial de recuperação foi literalmente “sob trevas”: desanimado, sem
energia para nada além das rotinas do tratamento, doenças clínicas associadas,
danos cognitivos. Sentimentos
devastadores de desolação, de natureza decididamente melancólica, dominaram os
primeiros meses. Certamente, beber passou
por sua cabeça como uma maneira de acabar com tudo aquilo – mas retornar à
“cápsula”, assim como Cypher, talvez
significasse para ele “trair” todas as outras funções de sua
consciência, completamente dedicadas à construção do seu “novo mundo”. Perseverou.
Sofreu ataques, internos – de fissura – e externos – de estigma e
incompreensão –, mas foi tocando a vida em frente: buscou apoio em grupos de
mútua-ajuda por algum tempo – deveria ter buscado mais –, se aproximou de
amigos estruturantes em seu ambiente de trabalho – no qual tinha estabilidade,
funcionando assim como um forte ambiente protetor –, tomou medicamentos e
dedicou-se à terapia.
Aos
poucos, ampliou o seu repertório social, reaproximou-se da filha –
estabelecendo com ela uma qualidade de vínculo que nunca tivera, “chancelada”
pela abstinência que vinha consolidando dentro de si. Dois anos depois trabalhava de uma maneira
mais estruturada e prazerosa e sentia-se mais próximo e “dono” das conquistas
que realizara sob a égide do senso de dever.
De vez em quando – agora já tem coragem de revelar isso na terapia – passa por sua cabeça a
ideia de beber para “se aliviar um pouco das coisas”, “extravasar”, mas
tudo não passam de déjà vu da Matrix –
em processo de desinstalação –, imagens de sedução, cantos-de-sereia, cujo preço a ser pago, ele sabe muito bem, é a
perda dos vínculos com a realidade, o retorno a rotinas “encapsuladoras” da
dependência e a reinstalação da Matrix: o ponto em que ele perderia outra vez a
liberdade de fazer escolhas perante a sua doença, chamada “dependência de
substâncias psicoativas”.
*Marcelo Ribeiro, psiquiatra, membro
do Programa de Pós-graduação do Departamento de Psiquiatra da Universidade
Federal de São Paulo (Unifesp), docente do Curso de Medicina da Universidade
Nove de Julho (Uninove), diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e
outras Drogas (Cratod) da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo,
presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo (Coned).
Contato com este blog: conslocsaudepompeia@gmail.com.
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